Outros Jeitos de Usar a Boca


Esse livro parou em minhas mãos e eu nem sei como, mas eu só tenho a agradecer. Talvez tenha sido o título “Outros Jeitos de Usar a Boca”, que tenha chamado atenção, talvez a capa. Realmente não vou saber com 100% de certeza o que foi, no entanto, se tornou um dos meus livros favoritos. Pura poesia.
Para começar é bom alertar que é mesmo um livro de poesia, já que é um gênero que não agrada a todos. Na verdade, isso funciona para qualquer gênero, mas sinto uma resistência maior com a poesia, já que não vejo tantas pessoas falando sobre e vejo muito se falar sobre romance, suspense etc. A autora do livro em questão é a indiana Rupi Kaur, de 24 anos. Seu sucesso começou nas redes sociais, Instagram e Tumblr, onde fazia postagens de seus desenhos e poemas sobre machismo, violência, amor, relacionamento e abuso.
aqui está a jornada de
sobrevivência pela poesia
aqui está o sangue suor lágrimas
de vinte e um anos
aqui está o meu coração
em suas mãos
aqui está
o amor
a dor
a ruptura
a cura
Rupi nasceu em Punjab, na Índia e foi para Toronto, no Canadá quando tinha 4 anos. Aos 5 anos, ela começou a desenhar, hobby que herdou da mãe. Com dificuldade para se comunicar na língua inglesa, acabou passando muito tempo sozinha. Quando finalmente aprendeu o idioma, selou uma amizade com os livros. Até os 17 anos, Rupi desenhava, mas passou a se dedicar à escrita e às performances. Em 2014, ela publicou o seu primeiro livro “milk and honey”, editado no Brasil como “outros jeitos de usar a boca”.
Pode ser considerado um livro polêmico de uma autora polêmica. Rupi teve seu nome levado a público em março de 2015, quando foi censurada no Instagram com uma postagem onde deixava uma pequena mancha de sua menstruação aparecer sobre o pijama. Gerou uma enxurrada de opiniões sobre a poesia visual. Em resposta ao Instagram, que afirmava que aquela imagem não condizia com suas diretrizes, a escritora escreveu:

“Obrigada Instagram por fornecer a resposta exata que meu trabalho foi criado para criticar. Vocês deletaram duas vezes, afirmando que ia contra as diretrizes da comunidade. Eu não vou pedir desculpas por não alimentar o ego e orgulho de uma sociedade misógina que terá o meu corpo em uma roupa íntima, mas não está de acordo com um pequeno vazamento quando as suas páginas estão cheias de incontáveis fotos/contas onde mulheres (muitas menores de idade) são objetificadas, pornificadas e tratadas como menos que humanas.”
Por essa postagem, já é perceptível a ousadia e posicionamento de Rupi. Uma voz que precisa ser escutada, lida e assimilada em um mundo aonde acreditamos que a mulher já provou muito mais que sua competência, já provou o seu valor e, mesmo assim, continua sendo tratada com inferioridade, salários menores, sem voz, violentada todos os dias por maridos, pais, tios e homens nas ruas. É um livro incômodo e emocionante, mas necessário, porque por mais seja algo que todos nós saibamos, ainda nos calamos diante de todo o caos. É preciso que surjam mulheres fortes como Rupi, na literatura, no cinema, no teatro, na TV, para romper o silêncio da conformidade e chamar a atenção.
você não agiu errado quando foi embora
você agiu errado quando resolveu voltar
pensando
que podia ficar comigo
quando fosse conveniente
e me deixar quando não fosse mais
Em um Instagram de uma amiga, vi duas mulheres falando que não consideravam as palavras de Rupi como literatura, muito menos poesia e eu me pergunto o motivo disso. A outra, continuou e disse que era “superestimado”. E eu ainda me pergunto o motivo dessas opiniões. É óbvio que não vou desmerecer nenhuma das duas, respeito as opiniões contrárias às minhas, mas acho que talvez elas não tenham sido atingidas pela poesia que está ali, dilacerando um pouco quem as sente, e isso significa muito mais do que simplesmente ler.
é preciso ter elegância
para continuar sendo gentil
em situações cruéis

A literatura mundial feminina poética, que tem nomes como o de Anais Nin e Virginia Woolf, agora alcançou seu espaço nas redes sociais e não tem mais quem as cale. Mesmo sem saber, ao ler uma legenda de alguma foto, você pode ser atingido pelas palavras de mulheres que estão saindo da zona de conforto e repressão para gritar aos quatro cantos seus sentimentos e suas histórias.
A arte minimalista e as palavras grandiosas de Rupi, se encontram em perfeita harmonia em seu livro, que é essencial na cabeceira de qualquer mulher que lute por seu espaço e respeito.
Publicado originalmente aqui.

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